Devemos fazer o que gostamos ou gostar do que fazemos?

Praticamente não passa um dia sem que algum site de notícias, revista ou página de comportamento estampe uma manchete sobre algum especialista afirmando que as pessoas devem fazer aquilo que gostam, não levar em consideração questões de mercado ou financeiras para sua escolha profissional e, inclusive, estimulando que a pessoa abandone tudo para arriscar “viver seu sonho”.

Sempre que leio algo assim, fico impressionado com a irresponsabilidade dessas pessoas, muitas vezes profissionais que lidam com a psique humana, ao estimular uma mudança tão radical sem nem avaliar os motivos da insatisfação daquela pessoa para a qual estão dirigindo essa recomendação.

A verdade é que, se todos nós fizéssemos somente o que gostamos, é bem provável que não existiriam faxineiras, lixeiros, coveiros, depiladoras, etc. Com raríssimas exceções, a imensa maioria desses profissionais trabalha pelo resultado financeiro e não pelo amor à profissão. Até mesmo em profissões mais glamourizadas, como Medicina, Engenharia e Direito, muitos profissionais não trabalhariam um dia mais sequer se ganhassem na Megasena acumulada.

Mas se não podemos todos fazer o que gostamos, qual é a solução? É procurar fazer aquilo que podemos da melhor forma possível. Apesar de todos esses gurus que sugerem que as pessoas larguem tudo, qualquer um de nós já conheceu pessoas que, embora trabalhem em algo que elas mesmas escolheram, o fazem com extrema má vontade. A atitude da pessoa diante do trabalho é que determina como será a qualidade desse trabalho. Isso e a sua competência. De nada adianta ser um médico que ama o que faz e ter feito uma péssima faculdade e nunca ter se atualizado. Poderá até atender gentilmente, mas acumulará fracassos.

Sempre que penso nesse assunto, lembro da história do Concerto para Flauta e Harpa K299 de Mozart. Para quem não sabe, Mozart não gostava desses dois instrumentos, flauta e principalmente da harpa. Tanto que essa é a sua única composição que inclui harpa dentre suas 616 peças. Porém, recebeu uma encomenda do Duque de Guînes para compor um concerto que incluísse ambos, pois o Duque era flautista e sua filha, Marie-Louise-Philippine estava aprendendo justamente a harpa. Mozart poderia dizer que não, que seu sonho era compor para piano, que não iria prostituir seu talento, etc. Mas Mozart tinha duas coisas importantíssimas para obter um bom trabalho: talento e fome. A fome nos dá motivos e o talento a forma.

O resultado foi maravilhoso! A combinação de flauta com harpa era, até então, algo muito raro e, graças a esse concerto de Mozart, vários compositores posteriores escreveram para essa dupla de instrumentos.

Aqui vemos o segundo movimento desse concerto e podemos constatar que, mesmo desprezando a harpa e não tendo muita simpatia pela flauta, quando a necessidade se junta ao talento e à boa vontade, obras-primas podem ser realizadas.

Um detalhe irônico foi que o Duque nunca pagou pela sua encomenda, o que parece ter sido um hábito bastante comum na época. A fome de Mozart persistiu, dando oportunidade a novas composições de qualidade.