Palavras criminalizadas e exercício de poder
Como a hipersensibilidade das minorias a certas palavras esconde um desejo de exercitar poder
Hoje, assisti a um trecho do programa Morning Show da rádio Jovem Pan, no qual o brilhante Caio Copolla analisava detalhadamente as duas possíveis origens da palavra “mulato”, mostrando que nenhuma das duas tinha sua origem na palavra “mula”, como tem sido espalhado. Na verdade, uma das possíveis fontes teria dado origem tanto à palavra “mulato” quanto “mula”, mas de forma independente.
Após essa explicação, o que assisti foi uma cena digna de um livro de Kafka ou até mesmo de um filme de terror. Tanto Edgar, quanto Fefito e Paulinha, de uma forma bastante agressiva, passaram a acusar Caio de estar utilizando do seu “privilégio de branco” para determinar o significado da palavra “mulato” e, para adicionar um raciocínio totalmente esquizofrênico, chegaram ao ponto de afirmar que não importa o significado da palavra pois, se os negros se sentem ofendidos com ela, ela não poderia mais ser utilizada.
Fiquei pensando como havíamos chegado a um nível tão intenso de alucinação a ponto de termos esse debate numa rádio.
A explicação que encontrei é que tudo começou quando o movimento LGBT decidiu que ninguém mais poderia utilizar o termo “homossexualismo”. Inventando uma clara mentira de que o sufixo “ismo” significava doença, os ativistas criaram um outro termo – homossexualidade – e que passou a ser considerado o termo politicamente correto a ser utilizado. De lá pra cá, já tive até oportunidade de ver homossexuais sendo atacados por terem utilizado o termo “homossexualismo”, que aparentemente não os incomodava, porque ninguém mais poderia utilizar este termo.
O que vemos, nesse caso, é que os ativistas do politicamente correto, ultrapassaram o limite de controlar as narrativas, para passar a controlar as próprias palavras. A partir de então, ficou claro que qualquer minoria poderia eleger uma palavra, demonizá-la, proibí-la e até criminalizar quem a utilizasse.
Nos EUA isso já havia ocorrido com o termo “nigger”, que não tem uma tradução para o português, uma vez que foi cunhado com objetivo de ser ofensivo. Não vejo nenhum problema em criticar quem utiliza esta palavra como adjetivo racista para ofender algum negro. Porém, os ativistas americanos foram mais longe: eles criminalizaram a palavra em si, não o racismo somente. Essa palavra não pode mais ser escrita ou falada, mesmo que seja para se referir a palavra em si e não a um negro. Para isso eles passaram a usar o termo “N word”. Se eu, nos EUA, ficar indignado ao ouvir alguém se referir a um negro como “nigger”, eu não posso dizer ou escrever que a pessoa falou essa palavra. Eu tenho que dizer que “ela falou a N word”.
Alguém pode argumentar que isso é aceitável uma vez que a palavra, desde o seu nascimento, já tinha um cunho ofensivo. Mas eu teria que ignorar o fato de que os negros americanos adoram brincar chamando um ao outro de “nigger” ou “nigga”, o que cria uma condição de claro privilégio: os negros podem falar uma palavra que os brancos não podem. Nem no auge do racismo no sul dos EUA ou na África do Sul algo parecido ocorreu…
Porém, fortalecidos pelo fato da sociedade americana ter aceitado pacificamente essa criminalização de uma palavra, outras minorias sentiram necessidade também de exercitar o seu poder. Foi aí que uma expressão que era utilizada até pelos homossexuais, o termo “fag” (contração de “faggot”), passou a ser considerada tão ofensivo que repetiram a mesma tática utilizada anteriormente e a palavra passou a ser conhecida como “F word”. Eu desconheço se alguma outra minoria já está propondo o banimente de alguma outra palavra e me pergunto o que ocorrerá quando o alfabeto inteiro já tiver sido utilizado.
Aqui no Brasil as redes sociais têm sido bastante pródigas em criminalizar palavras. Todos sabemos o que ocorre com quem utilizar os termos mais comuns pelos quais se chama algum homossexual, inclusive dentro do meio gay. E uma suspensão ou até mesmo um banimento da rede pode resultar da utilização esses termos, ainda que de forma benévola ou como humor.
O que ocorreu em relação aos termos “homossexualismo” e “homossexualidade” foi um absurdo. Em termos semânticos as duas palavras têm significados diferentes. Para quem se interessa pelo assunto, no final do texto está um trabalho sobre os sufixos “ismo” e “idade”. (1)
O sufixo “ismo”, dentre várias funções (nenhuma significando doença) quer dizer a maneira de proceder ou de pensar de acôrdo com o procedimento ou a doutrina de certo gênero de indivíduos: heroísmo, pedantismo, patriotismo, servilismo, etc. Alguém duvida de que pode-se então utilizar “homossexualismo” para designar o modo de proceder e pensar (direcionamento afetivo-sexual) dos homossexuais? Já o sufixo “(i)dade” um indicador de uma condição do ser, o que é bem diferente da definição anterior.
Diante disso, teríamos esses dois significados:
Homossexualidade (cs). [De homossexual+ -(i)dade.] S. f. Caráter de homossexual;
Homossexualismo (cs). [De homossexual + -ismo.] S. m. 1. Prática do comportamento homossexual. (FERREIRA, 2009) (1)
A seguir, lembro de algumas palavras cujo significado é totalmente diferente caso tenha o sufixo “ismo” ou o sufixo “(i)dade”: Legalidade e Legalismo; Liberalidade e Liberalismo; Materialidade e Materialismo; Moralidade e Moralismo.
Alguém pode argumentar que, independente do significado, homossexualismo carrega uma carga negativa independente de realmente não significar doença. Mas este argumento não pode ser aplicado diante desta tentativa mais recente de criminalização da palavra “mulato”, a partir de uma mentira sobre a sua origem.
Porque não resiste? Porque o termo “mulato” nunca teve conotação negativa, sendo inclusive muitas vezes utilizado de forma elogiosa, não só ao se falar das “belas mulatas”, mas até em letras de samba e poemas. Ficar ofendido, agora no século XXI, com um termo que não era ofensivo, utilizando para isso uma interpretação falsa do seu significado é uma tentativa clara de exercer poder sobre outros grupos.
Segundo Orlandi (2007), em sociedades como a nossa sempre há momentos de censura em que as palavras são reguladas, de forma que os sentidos são sempre geridos pelas relações de poder institucionalizado. (1) A despeito do que se diz, hoje quem está com o poder são exatamente essas minorias, com apoio da mídia.
Ora, esse controle até das palavras que as outras pessoas podem ou não utilizar é sério excede qualquer controle ditatorial já existente no passado. Ceder a esse clamor com o argumento utilizado no programa da rádio dizendo que cabe aos negros definir que palavras que os ofendem ou não é dar um poder que nem os brancos heterossexuais e cristãos jamais tiveram. E devemos sempre compreender que esse excesso de vitimismo que está se espalhando entre grupos que se intitulam minorias é sempre uma tentativa de exercício de poder, nunca de justiça.
Leitura adicional:
(1) Stefanne Emily Sousa Araujo – SUFIXOS –ISMO E -(I)DADE: SEMÂNTICA E PRODUTIVIDADE
https://repositorio.ucb.br/jspui/bitstream/10869/1542/1/Stefanne%20Emily%20Sousa%20Araujo.pdf