Esse texto é para protestar contra aquele médico que disse que o paciente que fala “peleumonia” merece morrer. O quê? Não foi isso? Então falou que o paciente não merecia ser tratado porque falou o nome da doença errada. Ah, não falou isso? Mas, afinal, o que o jovem médico Guilherme Capel Pasqual fez?
Dr. Guilherme somente postou, num grupo fechado de médicos no Whatsapp, uma foto sua com o texto “Não existe peleumonia, nem raôxis”. Citou o nome do paciente? Não. Postou uma foto dele? Não. Só que, do nada, surge um homem que alega ter sido o paciente que passou antes da foto e, bem servido de um advogado, alega ter se sentido humilhado por uma foto divulgada particularmente pelo médico e que nunca, em tempo algum, seria associada a ele. Isso mesmo! O homem se expôs e a culpa é do médico. Num ato de impressionante eficiência, o hospital onde ele trabalhava, o demitiu. Mas afinal, o que esse médico fez? E, o mais importante, o que ele fez para justificar ter sido demitido?
Dr. Guilherme não infringiu NENHUMA norma ética, prevista pelo nosso Código. Não existe absolutamente NADA lá que impeça um médico de criticar, de uma forma geral, algo que pacientes façam, sem revelar identidade ou imagem deles. Para justificar o linchamento moral a que ele vem sendo submetido, já li pessoas dizendo que, mesmo não sendo anti-ético, ele contrariou uma “ética geral” por ter agido como um adolescente costuma agir.
Na verdade, sempre achei que os médicos amadurecem mais tarde que outras pessoas. O curso extremamente longo, emendado com a residência médica, mantém o médico muito tempo pensando como um estudante. Isso me faz lembrar de um namorado de uma colega de faculdade, que comentou sobre isso. Ele dizia que nos via ainda com uma alegria juvenil que ele não tinha mais, apesar de ter a mesma idade. Enquanto nós estávamos preocupados com notas e livros, ele já estava trabalhando e preocupado com carreira profissional. Vejam a foto! Dr. Guilherme é um menino!! Deve ter poucos anos de profissão.
Mas, nesses 30 anos que separam o comentário daquele namorado da colega e os dias de hoje, o que vemos? Homens de mais de 35 anos que não perdem um filme de super-herói, que passam mais tempo jogando vídeo game do que pensando nas suas contas e aplicações financeiras, que brincam de skate até os 40 anos. Essas pessoas adultas de hoje e que gargalham com o vídeo da empregada doméstica que não conseguia falar YouTube, que adoram o vídeo de “as árvores somos nozes”, que riram do adolescente judeu que adorava a praia da baleia, são as mesmas que apedrejam esse jovem médico com uma lascívia sanguinária impressionante.
A cada ENEM, surgem mais e mais “pérolas” mostrando respostas absurdas dos candidatos. Elas são compartilhadas por todos, embora as respostas sejam facilmente reconhecíveis pelo candidato, que bem pode se sentir humilhado. Ninguém nunca questionou isso. Por que o médico atraiu tanta revolta?
Até um meme ridicularizando os médicos por criticarem o português de pacientes, mas usarem o título de “doutor” sem terem um doutorado, o que seria também um erro de português (SIC) já apareceu. Para quem caiu nessa, uma informação: o dicionário Aurélio diz que “doutor” é quem defendeu tese OU médico OU pessoa muito sábia. Convém conhecer definição de palavras antes de criticar o português de alguém…
Pior de tudo foi ler alguns perfis de pessoas cujas opiniões até respeito, aparentemente seduzidas pela tentação do politicamente correto e criticando não só o médico como qualquer outro que faça piadas com termos errados ditos por pacientes. São as mesmas pessoas que defendem uma maior liberdade da sociedade, um fim do patrulhamento e do politicamente correto, mas que acham que um médico não pode fazer uma piada com os termos errados de seus pacientes. São as mesmas que criticavam Dilma pelo seu linguajar estapafúrdio e Lula por sua ignorância arrogante. As mesmas que lamentaram a eleição de Tiririca. “Ah, mas isso é diferente!” Será mesmo? Vejamos.
Quem já assistiu a algum desses realities culinários já notou como os jurados fazem críticas ferozes e até humilham os participantes. Assistam a “Esquadrão da Moda” e veja os absurdos que os dois consultores de moda falam sobre o visual e gosto para roupas da participante. Aliás, aparentemente, quanto mais os participantes são criticados, mais sucesso faz o programa. E é nesse mesmo país, que um médico não pode criticar o fato de um paciente falar errado um nome de doença. E não estamos falando em uma Granulomatose de Wegener! Estamos falando de uma doença extremamente comum, conhecida há séculos e que, o mínimo que se esperava é que um paciente soubesse o nome de uma doença tão comum.
Não é o caso em que o paciente fala alguma expressão regional, como “gastura” ou “gargumilho”. Estamos falando de um nome ERRADO de uma doença. E qual o problema de um paciente falar um nome errado de doença? “O médico é que tem obrigação de saber o nome correto”. Não! Todos têm a obrigação de saber os nomes corretos das coisas realmente importantes da vida, principalmente em se falando de saúde. Há anos que convivo com pacientes que não sabem o nome do medicamento que tomam há 20 anos ou, o que é pior, confundem nomes dos medicamentos que estão tomando com nomes de medicamentos que tomaram no passado. Não saber que doença têm não é raro também. Vou contar três histórias verídicas que ocorreram comigo e que provam essa importância. Sei que irão parecer mentira, mas é esse o dia-a-dia do médico: lidar com situações que ninguém acreditaria se a gente contasse.
Um dia estava atendendo um rapaz e perguntei se ele já tinha sido operado alguma vez. Ele respondeu “Eu já retirei o pênis”. Levei um susto e, cheio de piedade, perguntei “Por que?”. E ele respondeu “Tive penicite”. Imaginem se eu não tivesse perguntado! Esse paciente teria, no seu prontuário, que ele não tinha pênis, quando não tinha apêndice…
Outro caso, ao perguntar se o paciente estava em algum tratamento, ele respondeu que estava tratando “leucemia”. Achei meio estranho e, como ele trazia algumas receitas, fui checar e constatei que o paciente não havia compreendido o termo “Hanseníase”, um eufemismo para Lepra que só existe no Brasil. Imaginem a diferença de importância de uma pessoa estar com leucemia ou com lepra…
O terceiro, embora não seja algo grave, ilustra como são os pacientes médios brasileiros. Um paciente, muito simples, me disse que “tinha excesso de vontade de fazer uma pornografia computadorizada”. Isso mesmo! O paciente nem sabia o nome correto do exame de tomografia, mas se achava mais habilitado que o médico para indicar o exame.
Na verdade, sabem o que o Dr. Guilherme fez? Tentou ser médico num país de gente ignorante, que se orgulha da sua ignorância e odeia quem não se nivela por baixo e, principalmente, tentou ser médico num país que odeia seus médicos. Há anos que tenho o costume de ler comentários de notícias envolvendo médicos, seja protestos por aumentos de valores de convênios, reclamações dos médicos cubanos, denúncias de erros médicos, etc. A imensa maioria dos comentários revela o ódio mortal que o brasileiro tem pelos seus médicos. As pessoas não têm limites ao generalizar para toda a classe médica as más experiências que tiveram com um ou dois médicos. É aterrorizante imaginar que essas mesmas pessoas são aquelas que estão na nossa frente durante uma consulta.
Tive uma colega médica, casada igualmente com um médico e que teve três filhas. Ela não estimulou nenhuma de suas filhas a seguirem a profissão dos pais. Qual o sentido de você ser um profissional que, se cobra R$ 200,00 por uma consulta, é chamado de “caro” pela mesma pessoa que vai a um cabeleireiro e gasta R$ 500,00 e sai achando ótimo?
Se é verdade que o médico chega imaturo aos 25 ou 30 anos, também é verdade que o médico amadurece (ou melhor, envelhece) mais rapidamente a partir daí. Enquanto outras profissões começam a subir em suas carreiras e usufruir desse sucesso, ao médico só resta trabalhar nos mesmos lugares e ganhando os mesmos rendimentos, pois, excetuando o trabalho como médico particular ou a carreira universitária, ninguém faz distinção entre um médico com 5 ou com 20 anos de experiência. Os convênios pagam exatamente o mesmo por uma consulta. Os poucos empregos assalariados não possuem plano de carreira. O médico ganha o mesmo se for inexperiente ou experiente. O único modo de um médico aumentar seus rendimentos é trabalhar mais horas, o que leva a um esgotamento e queda da qualidade do atendimento.
E isso para tentar, em uma única consulta, definir se aquela pessoa na sua frente é realmente um doente precisando de ajuda ou se é uma das inúmeras pessoas que procuram médicos se achando doentes porque não conseguem lidar com seus problemas pessoais ou uma pessoa que tem outro objetivo na consulta, como uma indenização por ter caído num supermercado ou um auxílio-doença, mas doente mesmo, não está…
Dr. Guilherme perdeu seu emprego, mas se for esperto, vai ganhar uma bela indenização pela demissão injusta e irá ganhar mais experiência na vida. Aprenderá que piada, você compartilha com amigos, não com colegas, pois os médicos estão entre os profissionais mais desunidos de todos. Compartilhar uma piada com colegas é certeza de ter alguns rindo e outros preparando para puxar seu tapete, Dr. Guilherme! Aprenda isso ou sofra as consequências. Por isso tenho tão poucos médicos entre meus amigos e menos ainda entre os amigos íntimos.
Mas ele é jovem e não vai ser a perda de um emprego que vai acabar com a carreira dele. Daqui a pouco, alguma celebridade global sofrerá ataques racistas e ninguém mais irá lembrar do médico que tentou fazer uma piada e, só por causa disso, foi comparado a Mengele.