Esse texto também poderia se chamar “Como ler uma noticia sobre médicos na imprensa brasileira”. Há muito tempo que a imprensa tem um comportamento desonesto quando se refere a médicos. Se uma categoria paralisa suas atividades exigindo um reajuste de 20%, é tratada com extrema simpatia. Se médicos fazem um dia de paralização por estar há três meses sem receber, são tratados como mercenários e insensíveis ao sofrimento dos pacientes.
Por isso, não foi surpresa ler a notícia da Folha de S. Paulo (link no final do texto) com o título “Nos consultórios, 1/4 dos médicos do país não aceita planos de saúde”. Inicialmente, podemos analisar o próprio título, apresentado como algo “absurdo”, quando não é. Realmente é de se estranhar que 25% dos médicos não atendam planos de saúde? Por que? De onde a jornalista tirou que atender plano de saúde é alguma obrigação ou regra?
Mas a reportagem, bastante extensa, apresenta uma série de estatísticas provenientes do relatório “Demografia Médica”, feito pela Faculdade de Medicina da USP com apoio dos conselhos federal e paulista de medicina, assim como opiniões tendenciosas.
Logo no começo, a matéria cita que, “na última década, os especialistas passaram a se concentrar em consultórios para atender clientes de planos de saúde. Mas, com a defasagem no valor das consultas, muitos médicos deixaram os convênios e optaram pelo atendimento puramente particular.”
Se isso fosse verdade, já seria uma coisa extremamente normal. Afinal, qualquer profissão pode optar por mudar sua clientela conforme suas necessidades.
Mas, por não buscar opiniões de pessoas que não se limitam a transferir a culpa para os médicos, a jornalista não cita o principal motivo pelo qual o número de médicos com consultórios aumentou.
Há cerca de 15 anos, se iniciou no meio médico, um costume que praticamente destruiu a profissão médica. Antes disso, era comum o médico encontrar empregos regulares, onde trabalhasse diariamente, recebesse um salário, com férias, 13o, FGTS, etc.
Um belo dia, alguém descobriu que poderia contratar não o médico, mas a pessoa jurídica desse médico. Assim, embora o médico continuasse a ter as mesmas obrigações de horário, ele não tinha mais nenhum direito trabalhista. Se tirasse férias, não receberia. Se faltasse por doença também. Médicos foram constrangidos a abrirem uma pessoa jurídica, o que não era vantajoso para muitos, inclusive por haver a exigência da firma ter dois ou mais sócios, levando a brigas e dissoluções de sociedade.
Com o tempo, as empresas descobriram uma forma ainda mais imoral de exploração do trabalho médico: as falsas cooperativas. A empresa não mais contratava o médico ou a pessoa jurídica dele, mas uma cooperativa, que prestava os serviços. Igualmente os médicos não tinham direitos trabalhistas e ainda havia alguém agindo como intermediário, ficando com parte dos valores pagos pela empresa.
Com isso, os médicos viram que não havia mais nenhuma vantagem em trabalhar em empresas, já que continuavam como profissionais liberais. Melhor investir num consultório, onde também não tinham direitos, mas teriam certas liberdades de horário, por exemplo.
Paralelamente, as empresas de saúde de grupo, popularmente conhecidas como Convênios, também descobriram que, se não credenciassem a pessoa física do médico, mas sua pessoa jurídica, uma série de impostos que a empresa teria que pagar, passavam para a pessoa jurídica do médico.
Com o tempo, praticamente nenhum convênio aceitava mais um médico que não tivesse pessoa jurídica. De certa forma isso facilitou que os médicos, que haviam abandonado os falsos empregos, buscassem credenciamento dos convênios.
Mas tem o outro lado. Os convênios, conscientes de que se tornaram uma fonte importante de pacientes e renda dos médicos, começaram a exigir de alvarás da prefeitura, da Vigilância Sanitária, até certificados de pós-graduação, o que limitou o credenciamento a alguns profissionais. Muitos médicos preferem não atender convênios do que se expor aos achaques dos ficais da Vigilância Sanitária. Para quem não sabe, nem textura de parede escapa de multas da Vigilância…
Tudo isso é conhecido de todos os médicos, pelo menos por aqueles que realmente atendem pacientes, o que não deve ser o caso do coordenador da pesquisa citada, Mário Scheffer, professor do departamento de Medicina Preventiva da USP, departamento esse que já era totalmente tomado por médicos de esquerda, ainda na época do regime militar. Scheffer já deu várias entrevistas lamentando a tendência dos médicos a voltarem a ser profissionais liberais. Aparentemente, num mundo ideal para ele, todos os médicos são funcionários públicos.
Agora, falemos de uma coisa que todo médico conhece, mas que ninguém fala nas reportagens. O índice de falta de pacientes de convênios fica entre 30 a 50%. Embora os pacientes particulares também faltem, esse índice é bem menor. Conheço diversos médicos que já tentaram alternativas para isso. Alguns marcam dois pacientes por horário, já que só um deles deverá vir, mas o problema ocorre quando os dois vêm, sobrecarregando o médico. Já ouviu críticas de médicos que atendem em dez minutos? Mas já ouviu também reclamações de demora excessiva na sala de espera? Ou seja, o médico não tem saída. Até porque o paciente que chega cinco minutos atrasado não pode ser atendido no tempo que já passou, criando uma bola de neve de atrasos.
Finalmente, chegamos à questão do pagamento. Em quase todas as matérias, os jornalistas optam por omitir o valor pago pelas empresas de convênio. Isso é muito suspeito porque não só é extremamente fácil obter essa informação, como também é um costume do jornalismo informar valores e custos sempre que o assunto é esse.
Nessa reportagem, a jornalista comete o mesmo erro de todos os outros, ao dizer que o valor MÉDIO da consulta é de R$ 60,00. Não é! Esse é o valor MÁXIMO, pago somente por poucos convênios. A imensa maioria paga R$ 40,00. Já ouvi muitas pessoas dizendo que, para a qualidade de atendimento prestado, esse valor está muito bom. Obviamente, são as mesmas pessoas que acham normal pagar R$ 200,00 num corte de cabelo.
Mas poucas pessoas compreendem que esse valor é corroído por diversos fatores. Primeiro a glosa. Quem não sabe o que isso significa, é um valor que o convênio desconta do total cobrado pelo médico, devido a erros de preenchimento de guia e até pelo médico ter atendido um associado cujo plano não daria direito a atendimento em consultório. Mas o pior é que, há anos as empresas de medicina de grupo, utilizam a glosa como forma de solução de problemas financeiros. Está com pouco caixa? Invente uma desculpa e glose TODOS os atendimentos do mês de um médico ou clínica. Como o recurso da glosa, demora um mês, o pagamento só sairá no mês seguinte.
Todo o pagamento de convênios é oficial, então tem desconto de imposto de renda. Devido ao volume de atendimento, o valor total costuma cair na maior alíquota. Então, só para citar o imposto, ignorando todas as outras despeças, o valor de cada consulta cai para R$ 26,00. Isso mesmo! Sua saúde está nas mãos de alguém que está ganhando menos que o seu encanador para trocar o courinho da torneira.
Vamos parar por hoje. Amanhã, prosseguirei com a análise da reportagem.