Os Dez Mandamentos, o filme do acaso

Poucas pessoas podem afirmar, com absoluta sinceridade, que são capazes de desvincular a qualidade de um trabalho da sua opinião pessoal sobre o autor desse trabalho. É muito difícil avaliar, por exemplo, o trabalho de um Wagner Moura ou José de Abreu sem pensar nas sandices que ambos vivem a falar.

Parece que essa dificuldade também afetou, durante meses, os críticos de TV brasileiros. Movidos por uma evidente má vontade com a Igreja Universal do Reino de Deus, proprietária da Rede Record, esses críticos levaram muito tempo para admitir o imenso sucesso da novela “Os Dez Mandamentos” e reconhecer seus méritos, se é que realmente os reconheceram. Prefiro acreditar nessa dificuldade de desvincular uma coisa da outra do que pensar numa eventual recompensa financeira por parte da emissora hegemônica para, além de sempre destacar as produções dessa emissora, ignorar as produções das concorrentes.

Conheci a novela por acaso, já após a sua metade. Uma vez por semana, ao me dirigir para uma atividade noturna, costumava ir com a TV do carro ligada. Ao retornar, a TV ligava automaticamente na primeira emissora da lista, que é a Record. Nas primeiras vezes, notei que era “mais uma novela bíblica” e mudei de emissora. Confesso que não achei nada que prestasse naquele horário. Não acompanhava nenhuma novela, muito menos “Babilônia”, a novela global que estava passando na época. Porém, mais para retornar assistindo a algo, algumas vezes deixei nessa novela e pude notar que se tratava de mais uma daquelas novelas onde o melhor dos personagens é um assassino em série. Esse tipo de enredo, em que um vilão se contrapõe a outro vilão e temos que escolher torcer entre Alien e Predador tem se tornado muito comum nas novelas da Globo.

Porém, à medida que foram passando as semanas, fui deixando a TV na Record, maravilhado com a belíssima produção e – Por que não? – com a trama, cheia de personagens inexistentes no relato bíblico e que tornavam “Os Dez Mandamentos” um ótimo entretenimento. Comecei a chegar em casa e ligar a TV para não perder o final do capítulo. Quando notei, já estava gravando capítulos quando não estaria em casa. Para alguém que sempre gostou da cultura egípcia e arqueologia, a reconstrução de ambientes, roupas e principalmente, adereços era fascinante.

Para meu espanto, os críticos de TV quando não ignoravam a novela, dedicavam a ela somente palavras de críticas, na sua imensa maioria infundadas. Porém, a audiência foi crescendo e, quando começaram as pragas, o público pode ver efeitos especiais feitos em um estúdio estrangeiro nunca vistos antes numa novela, mesmo da Globo. Enquanto isso, a audiência de “Babilônia” ia despencando, sendo que seu autor, ao invés de fazer uma autocrítica, preferiu acusar o moralismo do público por causa de um único beijo entre duas idosas no primeiro capítulo. Alguns críticos até tiveram coragem de apontar os reais defeitos da trama global, mas mesmo que o fracasso se devesse a um moralismo do brasileiro, não deixa de ser pretensioso e até violento que um autor ache que um público conservador seja obrigado a gostar de uma novela que afronte seus princípios, somente porque ele assim o quer.

É claro que a preferência do público por uma trama bíblica incomodava ainda mais tanto o autor quanto os críticos. Seja por má vontade ou por simples desconhecimento, estes pareciam ignorar que “Os Dez Mandamentos” também apresentava intriga, traições sexuais, assassinatos, ou seja, o público não rejeitou “Babilônia” por ser moralista, mas porque a novela era muito ruim mesmo.

Com o passar dos dias, a novela começou a ultrapassar a audiência de “Babilônia”, inicialmente em alguns momentos, depois durante todo o capítulo, para atingir seu pico na travessia do Mar Vermelho. Não deixou de ser curioso ver com que alegria os críticos anunciaram que, após esse capítulo, a audiência havia caído, ignorando que ainda era uma ótima audiência, invejável mesmo…

Podemos acusar os bispos da IURD de tudo, mas não de não saberem ganhar dinheiro. Quando viram o tremendo sucesso da novela e, talvez, sabido que muitas pessoas lamentavam não terem acompanhado a novela desde o princípio, foi decidido que a novela seria editada para se transformar em um filme. Já tivemos casos de filmes que foram filmados simultaneamente de forma a serem igualmente lançados como minissérie para TV, como foi o caso de “Chico Xavier”, mas nunca ocorreu de um filme ser feito DEPOIS de ter sido filmado como minissérie ou novela. Nesse sentido, foi o acaso que fez o filme “Os Dez Mandamentos” existir.

Talvez por isso, o filme sofra de certas dificuldades em termos de edição. Coube à direção e edição a tarefa, muito difícil, de selecionar cenas da novela de forma a montar uma narrativa. Praticamente todos os personagens inexistentes na narrativa bíblica foram excluídos de forma a transformar a história em uma reprodução bíblica mais fiel. Cenas mais longas, particularmente das pragas, foram resumidas a alguns segundos. Como alguém que assistiu a essas cenas por inteiro, não posso negar que houve perda do impacto e da dramaticidade. A novela ainda é maravilhosa e creio que a Record ganhará uma fortuna ao vendê-la para outros países.

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Por outro lado, o filme não desaponta quem não assistiu à novela. Trata-se de um belo filme, emocionante, com excelente fotografia, uma ótima trilha sonora e interpretações memoráveis, particularmente de Sérgio Marone, que precisou sair da Globo para provar que é um ótimo ator (algo que já ocorreu há décadas com Marcos Palmeira). Não é à toa que o canal Telecine (de propriedade da Globo) adquiriu os direitos para exibi-lo na TV paga (a Record manteve os direitos para a TV aberta).

Quem acompanhou a novela, certamente irá achar que esta foi bem superior ao filme, mas quem não teve a oportunidade de acompanhar, certamente irá gostar e se impressionar com um dos filmes mais bem feitos que o cinema brasileiro já fez.