Segundo o Ministério da Saúde, no ano de 2017, 35.374 pessoas morreram no trânsito brasileiro. Este tipo de estatística leva muitos desavisados a clamar para que o Estado nos ajude a prevenir a morte de milhares de brasileiros. Pouca gente tenta colocar este tipo de coisa em contexto. Segundo o CIA World Factbook a taxa de mortalidade do brasileiro em 2017 foi de 6,9%. Em uma população de 209.000.000 pessoas, 14.421,000 morreram neste ano. Ou seja, o trânsito é responsável por menos de 0,25% das mortes no Brasil. Um outro dado é que temos menos de 1 morte para cada 100 milhões de km percorridos por veículos. Leia isso corretamente. A cada 100 milhões de km percorridos por veículos, apenas uma morte ocorre. Por qualquer medida, o risco de acidente de carro é mínimo e este não é um problema grave a ser resolvido. Andar de carro é algo muito seguro.
No entanto, a cada ano, tentamos mais medidas para combater a morte no trânsito. Leis mais restritivas passam. Novas tecnologias de segurança são incorporadas aos veículos, aumentando seu custo. O uso de certos equipamentos de segurança, como o cinto, é tornado obrigatório. Blitz são realizadas. Enfim, uma custosa operação de guerra a algo meramente percebido como um problema. Há pouco tempo, contei mais de 15 pessoas envolvidas em uma única operação da Lei Seca. Imagino que elas não trabalhem de graça. Isso sem contar com materiais e equipamentos. Como justificar estes gastos e perdas? Apenas pela moralidade das ações. Uma única vida que se salve, justifica qualquer ação, certo? Errado!
Vejam, o problema é que, na atualidade, as pessoas, mesmo aqueles que chamamos de intelectuais, tem uma visão infantil sobre Ética. Quando pensam em problemas éticos, o que conseguem fazer é medir, de forma canhestra, a quantidade de dor e prazer de cada opção. Ou seja, são de um Utilitarismo rasteiro. Eles parecem desconhecer os problemas graves do Utilitarismo. Qualquer um que medite sobre os famosos Trolley Problems vê isso. Para aqueles que não conhecem, estes são cenários em que você precisa fazer uma escolha. Em muitos destes cenários, parece que o Utilitarismo funciona. Será que acionaríamos uma alavanca que desviaria um bonde desgovernado do caminho de 5 trabalhadores, mesmo que isso matasse 1 trabalhador na linha alternativa? Parece que sim. Mas você empurraria uma pessoa no trilho para parar o bonde e salvar as outras 5? Ou, se você fosse um médico, você mataria um paciente saudável, com um tipo raro de sangue, para doar seus órgãos e salvar a vida de outros 5? Neste último cenário, a decisão utilitarista é particularmente monstruosa.
O Utilitarismo é, literalmente, a doutrina de que os fins justificam os meios e que tudo que precisamos medir nos fins é a quantidade de dor e prazer. Colocada desta forma, me parece óbvio que a discussão de qualquer ponto ético importante não pode ser feita em termos Utilitaristas.
Não me entendam mal! O peso das consequências é uma parte significativa da Ética. No entanto, somente um pensamento inferior pode achar, após dois séculos de discussões éticas desde dos tempos de Jeremy Bentham, que o peso das consequências é toda a Ética. E uma das outras coisas que entram, de forma importante, no cálculo moral, é a autonomia do ser humano. Por autonomia não quero dizer apenas dar às pessoas a liberdade de fazer coisas com as quais concordamos, mas também a liberdade de fazer coisas com as quais discordamos e mesmo coisas que achamos erradas. Uma vez que a pessoa cometeu um crime, ela abriu mão de seu direito a liberdade, mas a possibilidade do crime é uma consequência direta, ainda que infeliz, da liberdade de ação.
Se eu defendo que até mesmo a possibilidade de um crime, como um assassinato, é necessária se damos valor intrínseco a liberdade, o que dizer em relação a possibilidade de se expor a um mero risco de baixa probabilidade? A probabilidade de eu me meter em um acidente em qualquer dia em que eu pegue um carro é ridiculamente baixa. Como não me incomoda, usar o cinto de segurança para minimizar este risco ainda vale a pena para mim. É uma decisão minha. Como eu serei o único a ser prejudicado se eu não estiver de cinto e o acidente ocorrer, para mim é claríssimo que o Estado tem zero de direito de me obrigar a usar o cinto. Isto fere minha liberdade e só pode ser defendido por um cálculo utilitarista mal feito que não leva em conta a baixa probabilidade do risco. Não é muito diferente no caso da cadeirinha. Meus pais, de vez em quando, me deixavam viajar no bagageiro do fusca. A autoridade dos pais sobre os filhos tem valor intrínseco e também não pode ser restringida de alma leve por um cálculo utilitarista mal feito.
Quero ser claro aqui quanto ao que chamo de cálculo mal feito. Se você vai executar uma medida que vai, certamente, salvar a vida de uma determinada pessoa, isso tem um peso. Se existe uma pessoa no trilho, mas salvá-la vai destruir o bonde e custar seu emprego, você tem a obrigação de salvá-la. Mas e se a inação tem a probabilidade de 0,25% de custar a vida da pessoa no trilho? E se a probabilidade for de 0,00025%? E se a ação for contrária à um valor intrínseco como a liberdade? É importante notar que, em um cálculo utilitarista bem feito, há sempre uma probabilidade p em que a vida da pessoa no trilho vale menos do que o emprego da pessoa que pode prevenir o acidente. Mas as pessoas não são apenas utilitaristas, elas são utilitaristas superficiais que não sabem nem raciocinar corretamente sobre o que defendem.
Na verdade, eu vou mais longe. O cálculo utilitarista diz que, com probabilidades muito baixas de consequências negativas, um prazer certo seu pode ser mais importante que a possível perda de uma vida humana. Com uma probabilidade suficientemente baixa, segundo o utilitarismo de consequências previsíveis, que é a versão mais plausível, é moralmente correto que você tome uns drinks e dirija para casa se isto te dá prazer. Isto porque, segundo o utilitarismo de consequências previsíveis, o ato moral é aquele que maximiza o prazer e minimiza a dor dentro do que é previsível. Na verdade, seria moralmente errado não tomar os drinks. Não concorda? O motivo é que quando você toma decisões morais de verdade, você não é utilitarista, não realmente. Você só está acostumado a dar palpites utilitaristas quando a questão é a criação de leis e políticas públicas. Talvez seja hora de estudar Ética um pouco mais.