Ainda o parto animalizado

Após a insistência de amigos, resolvi retomar esse tema. Alguns até insistiram para que eu pedisse direito de resposta ao Estadão, onde uma blogueira citou meu texto, Parto Animalizado. Porém o portal deles já tem muita audiência e o Olhar Atual está começando. Então, que seja aqui que as pessoas venham ler meus textos, não lá.

Nunca canso de me surpreender como as mesmas pessoas que alegam defender direitos de alguns grupos não respeitam um direito básico como o da livre opinião. Escrevi um texto com minhas opiniões sobre o chamado parto humanizado EXATAMENTE como tantas pessoas escrevem a favor dele.

Agressões
O resultado foi uma demonstração de intolerância e agressividade impressionante. Além das pessoas que foram à página do Olhar Atual no Facebook fazer ataques pessoais a mim, ainda algumas tiveram a pachorra de procurar meu perfil pessoal para enviar mensagens de ódio. Os termos utilizados foram os mais baixos e agressivos. Então é assim? Discordar de vocês me coloca na sua lista de inimigos? E vocês se julgam melhores que os outros para criarem blogs, colunas, grupos e páginas a favor do parto humanizado e não aceitarem que UM site publique algo que discorde de vocês?

As críticas até sobraram para a qualidade da ortografia empregada. Curiosamente, em um país onde não faltam manchetes e textos escritos por jornalistas cheios de erros crassos, resolveram implicar com o português de um médico…

E essa minha discordância do parto domiciliar é fruto de algum “radicalismo” da minha parte? Veremos que não é bem assim e que os radicais aqui são outros.

A intolerância ainda prosseguiu quando uma blogueira resolveu “rebater” o meu texto. Por indicação de amigos, fui lá ler a resposta dela (que embora se chamasse “Carta ao médico…” somente se referiu a mim na terceira pessoa, pregando para as suas próprias seguidoras) e pretendo igualmente analisar seu texto.

Logo de início, a autora estranha o fato de um texto sobre parto ter sido escrito por um neurologista. Nesse momento confesso que parei a leitura e fui ver quem era a autora, para descobrir que se tratava de uma jornalista. Ou seja, na mente dessa senhora é estranho um médico neurologista escrever sobre parto, mas não é estranho uma jornalista ter um blog dedicado a isso…

Apelando para o recurso de questionar a veracidade da fonte, ela duvidou da existência das fotos citadas no texto. Como jornalista, ela sabe que eu nunca poderia veicular as fotos da parturiente e sua filha, sob pena de processo, mas finge ter sentido a falta das “provas” do que contei. Infelizmente, para ela, eu tenho todos os integrantes da página Mais Médicos Fail, onde o álbum foi originalmente compartilhado, como testemunhas.

Mas por que voltar a escrever sobre o assunto? Para mudar a cabeça dessas ativistas? Claro que não! Nunca tive essa pretensão. Faço isso em respeito às gestantes em geral. Aquelas que estão grávidas e entram em vários portais de notícias e só encontram páginas defendendo o parto domiciliar e que acabam ficando sem uma opinião contrária para poderem tomar uma decisão consciente. Passam a achar que isso é uma unanimidade. Precisam saber que não é. Se depois optarem pelo parto domiciliar, tudo bem! Fizeram isso depois de conhecer várias posições, não somente uma.

Então é para você, futura mamãe, que eu dedico esse texto. Não o leia como uma tentativa de te influenciar, mas como uma fonte de informações para que, juntamente com aquelas que você obterá nos sites a favor do parto domiciliar, possa tomar uma decisão fundamentada para sua vida e de seu bebê.

O parto é um momento lindo da vida da mãe e do bebê. Mas também é um momento de risco. Se a imensa maioria das mulheres está apta a ter filhos até mesmo sozinhas, isso não se aplica a uma minoria. Mas essa minoria, em um universo de milhões de gestantes, ainda representa um número apreciável. Fazendo um paralelo, se eu te disser que 93% das pessoas picadas por uma jararaca sobrevivem mesmo sem receber o soro antiofídico, qual a sua atitude se uma jararaca te picar ou picar seu filho? Deixar pra lá, afinal “o que são 7%?”. E se VOCÊ ou seu filho cair nesse 7%, não fará toda a diferença?

Então, compreenda que todas essas lindas histórias de mulheres que pariram no seu quarto, banheiro, jacuzzi com ótimos resultados representam as 93% que foram picadas por jararaca e não morreram. Existe um universo triste e escondido, que nenhum desses sites mostra: os casos onde nem tudo deu certo…

As entidades
Qual a posição oficial dos Conselhos de Medicina sobre o parto domiciliar? O parecer do Conselho Federal de Medicina sobre o assunto (link no final do texto) foi que “Após análise criteriosa de estudos científicos realizados no Brasil e no exterior, o plenário do Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu recomendar aos médicos e à sociedade a realização dos partos em ambiente hospitalar de forma preferencial por ser mais segura.  ‘As mortes maternas e perinatais podem ser evitadas com adoção de medidas no âmbito da prevenção e da atenção, o objetivo do CFM ao se manifestar foi apontar a existência de uma zona de conforto, menos exposta aos riscos inerentes a qualquer procedimento’, afirmou Roberto Luiz d’Avila, presidente da entidade.”

Outro trecho fala que a “legitimidade da autonomia materna não pode desconsiderar a viabilidade e a vitalidade do seu filho (feto ou recém-nascido), bem como sua própria integridade física e psíquica”. Traduzindo: embora legítimo o direito de decidir como será seu parto, a mulher não pode ignorar os dados e colocar o filho em risco.

“Mesmo se o parto domiciliar começa e caminha bem, uma intercorrência pode acontecer a qualquer minuto, nunca há 100% de garantia. Se acontecer algo com o bebê no último segundo do parto, ele precisará ser socorrido rapidamente”, diz José Fernando Maia Vinagre, corregedor e coordenador da Comissão de Parto Normal do Conselho Federal de Medicina (CFM). Todas essas vantagens desaparecem se mãe e filho estão em casa, e principalmente, longe de um hospital. Em casos de emergência, a distância da casa da parturiente ao hospital pode ser decisiva para a vida de ambos. “Como há riscos envolvidos, que costumam ser baixos, mas iminentes, o CFM não dá aval a essa prática”, diz Vinagre.

Algumas gestantes irão achar estranho pois leram nesses sites que um trabalho científico mostrou que o parto domiciliar é igual ou melhor em termos de riscos materno-fetais. Para isso, vocês precisam compreender que um único trabalho científico nem sempre pode definir claramente a vantagem de um procedimento. Foi por isso que, há alguns anos, a Medicina passou a fazer trabalhos de metanálise, analisando resultados de vários trabalhos. Isso aumenta a confiabilidade do estudo.

Artigo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology encontrou uma taxa de morte neonatal de 0,2% (32 mortes em 16.500 nascimentos) em partos domiciliares planejados, comparada a 0,09% (32 em 33.302 nascimentos) em partos hospitalares. As conclusões desse trabalho foram baseadas em uma revisão sistemática da literatura médica que abraçou 237 estudos encontrados, alguns deles conduzidos na Austrália, no Canadá, na Holanda, na Suécia, na Suíça, no Reino Unido e nos Estados Unidos. São 237 estudos contra um ou dois citados nos sites de ativistas.

Esse parecer do CFM também se baseou nas recomendações da Comissão de Prática Obstétrica do American College of Obstetricians and Gynecologists, que “apesar de expressar respeito ao direito da mulher, reforçou que essas pacientes devem ser informadas dos riscos e benefícios envolvidos com base em evidências recentes. Especificamente, deverá ser informado que, embora o risco absoluto possa ser baixo, o nascimento planejado em casa está associado com um risco duas a três vezes maior de morte neonatal quando comparado  com o nascimento hospitalar.” E é exatamente isso que estamos fazendo aqui: informando as gestantes para que tomem uma decisão consciente, mesmo que seja pelo parto domiciliar.

Peço às leitoras gestantes que observem que, enquanto os defensores do parto domiciliar me acusam de “desconhecimento”, parecem fazer questão de não conhecer uma pesquisa que reuniu 237 estudos. Citam um ou dois médicos favoráveis e ignoram os milhares de médicos que participaram desses estudos. Isso é ser honesto com vocês? Não seria justo que apresentassem o outro lado?

Vamos agora ver o que o Conselho Regional de Medicina (CREMESP) diz sobre esse tipo de parto. A Câmara Técnica de Saúde da Mulher (CTSM) do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) não recomenda o parto domiciliar, assim como a Associação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e a Associação Brasileira de Pediatria (SBP), de acordo com Krikor Boyaciyan, conselheiro e coordenador da CTSM. “Não há parto sem risco. Posso citar alguns exemplos, como atonia, inversão e rotura uterinas; embolia amniótica, procidência, laterocidência, prolapso, circular e brevidade de cordão umbilical; e distocia do bisacromial, entre muitas outras complicações”, adverte Boyaciyan. Essa não recomendação se aplica a partos domiciliares MESMO QUE ACOMPANHADOS POR MÉDICOS (o que descarta a falácia de que os médicos seriam contra por perderem pacientes).

Mas por que então países do primeiro mundo, como Holanda e Inglaterra, têm como modelo de assistência o parto domiciliar? É preciso ressaltar que os países que possuem maior incidência de parto em domicílio dispõem de UTIs com capacidade de realizar procedimentos cirúrgicos na porta dos lares das parturientes. Agora, se você vai colocar uma ambulância-UTI na sua porta, por que não fazer o parto numa maternidade?

Nas palavras da conselheira do CREMESP, a obstetra Silvana Maria Figueiredo Morandini, “Assumir riscos alegando uma medicina humanizada é uma involução. A medicina bem feita vai da relação entre médico, gestante e equipe envolvida. E é desse relacionamento que se dá a humanização do parto”. E veja que isso tudo pode ser obtido dentro de ambiente hospitalar, até mesmo com presença de doula, se for da vontade da gestante.

De acordo com Antônio Júlio de Sales Barbosa, obstetra do Hospital Santa Catarina, hoje já é possível que o parto seja feito de formas mais humanizadas dentro dos hospitais. Em alguns centros há salas preparadas especialmente para isso, com treinamento adequado da equipe e maior respeito às necessidades e vontades da gestante. “É ela quem escolhe a posição em que deseja dar à luz ou mesmo se quer ou não tomar anestesia no parto normal. Cada vez mais estamos nos preparando para que a mulher tenha voz ativa.”

Em um estudo publicado no American Journal of Obstetrics & Gynecology, conceituado periódico médico internacional, o obstetra Joseph Wax e equipe demonstraram que a taxa de mortalidade neonatal dos partos domiciliares é até três vezes maior que a dos realizados em hospitais. Em nota, o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia salienta os dados da pesquisa de Wax para reforçar sua posição em não recomendar o parto domiciliar – em função, mais uma vez, dos riscos.

Já a FEBRASGO, Associação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia, considera que a mulher até tem o direito de escolher onde quer ter o filho, mas que “elas devem ser informadas sobre os riscos e benefícios, baseados em evidência científica dos diversos tipos de partos e de onde o filho vai nascer. Especialmente é preciso saber que, embora o risco absoluto seja baixo, o parto domiciliar está associado com o aumento de duas vezes de morte neonatal quando comparado ao parto hospitalar.”

Quanto à episiotomia, desafio qualquer leitor a achar onde foi que eu defendi a sua realização de forma indiscriminada. Eu somente descrevi o que é e por que ela pode ser necessária. E por que fiz isso? Em respeito a você, gestante, que irá ler em inúmeros blogs que a episiotomia é uma mutilação totalmente desnecessária. Não é. Caso contrário já teria sido proibida. Sua prática vem diminuindo com o tempo, mas não foi abolida e nem deve ser demonizada como tem sido por essas páginas.

Aliás, também desafio os leitores a apontarem onde, no texto anterior, eu defendi a substituição do parto domiciliar pela cesárea. Digo isso porque várias pessoas foram “argumentar” contra o meu texto falando em número de cesáreas no Brasil, etc. Isso pode ser acidental, mas pode ser também uma tática proposital de acusar o oponente de dizer algo que ele realmente não disse.

Omissão
Para as gestantes que leram tanto o meu texto anterior quanto a “carta” da jornalista, peço para que façam um teste. Lembram quando a jornalista disse que, em tempo recorde (porque escreveu o texto no mesmo dia em que leu meu artigo) consultou filósofos, analistas políticos e todos teriam rido do meu conceito de “religiões laicas”? Pois escrevam “religiões laicas” no Google e vejam que não estou doido. Agora, eu pergunto: uma pessoa que alega que ninguém levou a sério um conceito que é tão facilmente encontrável em uma simples busca, será que não está escondendo outras informações de vocês?

Por fim, respondo à estranheza da jornalista-ativista. Por que um neurologista se preocupa com o local onde mulheres estão tendo seus filhos? Porque é COMIGO ou com outro neurologista que essas crianças terão que se tratar, talvez pelo resto da vida, se algo der meio errado. Digo “meio errado” porque se der muito errado a criança não sobrevive, mas se sobreviver e tiver algum problema de anóxia neonatal, não será com um obstetra, com uma doula ou mesmo com uma jornalista que ela terá que se tratar. Será com um neurologista…

REFERÊNCIAS:
Parecer do CFM
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23156%3Apor-oferecer-maior-seguranca-cfm-recomenda-partos-em-ambiente-hospitalar&catid=3

CREMESP
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1448

FEBRASGO
http://www.febrasgo.org.br/site/?p=7069

MATÉRIA DA VEJA
http://veja.abril.com.br/noticia/saude/parto-domiciliar-quando-o-risco-nao-e-necessario/