Como funciona a cabeça dos “inteligentinhos”?

Por Vítor Geraldi Haase (convidado especial)

INTELIGENTINHOS

O termo “inteligentinho” foi criado pelo filósofo Luiz Felipe Pondé. Mas acho que, apesar de ser especialista no assunto, nem o Pondé sabe direito como é que a cabeça deles funciona. Os inteligentinhos e inteligentinhas são aqueles caras descolados, desprovidos de preconceitos – a não ser do preconceito de não ter preconceito. Segundo o Pondé, nos jantares chiques, os inteligentinhos defendem as causas politicamente corretas, tais como a ecologia, o feminismo, a igualdade econômica etc. etc. O mais recente lócus geográfico conquistado pelos inteligentinhos são as invasões de faculdades.

Alguns inteligentinhos são ativistas. Não defendem suas causas apenas em jantares ou no boteco, mas vão à luta. Constituem a Polícia do Politicamente Correto e saem por aí caçando violações dos seus pressupostos, o famoso “crime de opinião”. Alguns vão mais além e são mais perigosos ainda. Vão às vias de fato: invadem prédios públicos e/ou jogam molotovs.

Os inteligentinhos não se dão conta disso, mas seu maior problema é a contradição em termos. Eles não são coerentes, não têm integridade intelectual. Seu comportamento é incompatível com suas causas e as próprias causas são contraditórias.

Vamos discutir apenas as contradições conceituais. Vou escolher três, como amostra: a saúde mental, a educação e a ecologia.

SAÚDE MENTAL

Os inteligentinhos são discípulos de Lacan, Foucault. Laing, Cooper, Battaglia etc. Eles se agregam em torno de uma causa chamada movimento antimanicomial. Que na verdade é um movimento antipsiquiátrico. Defendem que as categorias nosológicas não devem ser aplicadas àquilo que se convencionou chamar de “doença mental”. As doenças mentais não são outra coisa que não variantes do existir no mundo, formas de expressar a subjetividade. A doença mental tem um componente libertário, de revolta contra as relações opressivas de poder, contra o sistema etc. O discurso dos antimanicomiais por vezes resvala para uma apologia romântica da doença mental. Ouvindo esses caras vociferando pode até mesmo dar vontade de adoecer mentalmente. Deve ser muito bacana a experiência de esquizofrenizar. Se eu fumar um baseado, quem sabe não faço uma viagem sem volta e viro herói da causa antimanicomial?

Essa é a teoria. O que acontece na prática? Uma das principais conseqüências práticas do movimento antimanicomial é que a internação psiquiátrica foi proibida para os pobres no Brasil. Eles acabaram com os leitos psiquiátricos em hospitais públicos. O governo não reclamou. Afinal, isso representa uma economia e tanto. Agora, quando as pessoas surtam. elas passa o dia em algum centro de referência de saúde mental, dançando cirandinha. Depois, de noite, a família é que tem que se haver com a agitação, o delírio, a agressão, o suicídio etc.

Os hospitais psiquiátricos antigos eram realmente inqualificáveis. Mas a psiquiatria progrediu muito. Há uma compreensão crescente da importância da ecologia. A saúde é concebida a partir de uma perspectiva biopsicossocial. Os manicômios se tornaram obsoletos no momento em que os primeiros fármacos antipsicóticos foram introduzidos no mercado. Estamos entrando na era da farmacogenômica, ou seja, das prescrições medicamentosas customizadas etc.

Mas sempre têm aquelas situações limites, nas quais um paciente fica agitado, agressivo ou apresenta risco de suicídio. Por vezes a resposta ao tratamento pode demorar alguns dias. Nessas circunstâncias é conveniente recorrer a uma intervenção psiquiátrica. As famílias de posses podem internar seus familiares em hospitais psiquiátricos modernos, confortáveis, bem equipados e com equipes preparadas. Como os poucos leitos psiquiátricos, que eram poucos e péssimos, foram extintos, os pobres caem em uma situação de dupla desvantagem discutida.

Os inteligentinhos partem das melhores intenções, daquelas que povoam o Inferno. Eles só querem o bem dos doentes mentais. São eles que sabem o que é bom para os doentes mentais. Na sua agnosia, não percebem que, com o seu dogmatismo ideológico, acabam por prejudicar justamente aquelas pessoas que alegam ajudar. Justamente os mais pobres, que não dispõem de recurso para bancar o atendimento privado.

A epidemiologia ensina que a doença mental é mais freqüente nos pobres. Então eles já entram em desvantagem nisso. Aí os inteligentinhos iluminados barram o seu acesso à internação psiquiátrica, instaurando uma segunda forma de desvantagem. Ah, quase que me esqueço. Tem uma terceira também, que é ficar ouvindo a discurseira verborrágica dos inteligentinhos.

EDUCAÇÃO

Os inteligentinhos são discípulos de Paulo Freire, um energúmeno que foi eleito “Patrono da Educação Brasileira”. Um cara que conhecia a literatura marxista mas que passou a quilômetros da psicologia (científica) do seu tempo. Eu já falei demais sobre educação. Quem quiser, poder uma olhada no meu blog sobre Neuropsicologia e Desenvolvimento Humano (http://npsi-dev.blogspot.com.br/). Aqui só vou comentar o essencial para o meu argumento.

As crianças brasileiras não aprendem a ler e agridem as professoras. Por que insistir com a falta de método do Paulo Freire, se a psicologia cognitiva descobriu como ensinar a ler e se a psicologia comportamental desenvolveu programas para motivação e disciplina não-coerciva em sala de aula? A resposta é uma só. Os motivos são ideológicos.

Mas aí é que vem a contradição e invade a cabeça do inteligentinho pela porta dos fundos. A insistência em abordagens educacionais fracassadas têm como efeito outra forma de dupla desvantagem. A baixa renda e baixa escolaridade dos pais é um fator de risco para dificuldades de aprendizagem escolar. Além do risco familiar, as crianças pobres só têm acesso a escolas públicas, muitas delas de péssima qualidade. Todo semestre nós atendemos jovens de 12, 13, 14 anos que foram promovidos de série até o final do Fundamental sem saberem ler. São adolescentes que deveriam estar se preparando para o mercado de trabalho. Só que são analfabetos. E foram passando de ano, ano após ano, sem que ninguém se preocupassem em ensiná-los a ler. Quando passam a trabalhar com o método fônico, esses jovens aprendem a ler em algumas semanas. Até mesmo os que têm deficiência intelectual. Não existem razões biológicas para que uma criança não se alfabetize. As razões são pedagógicas, ideológicas. E as conseqüências são funestas para os mais pobres e para o País inteiro, que não acumula capital humano e cognitivo.

ECOLOGIA

Outro tema que captura a atenção dos inteligentinhos é a ecologia. Eles são eleitores da Marina Silva. São os famosos melancias: verdes por fora e vermelhinhos por dentro. Só que, novamente, percebemos o brutal hiato entre o devaneio ecológico conceitual e a dura realidade de preservar a ecologia do cotidiano.

Uma das primeiras medidas tomadas pelos atuais invasores da Faculdade onde trabalho foi impedir que as faxineiras exercessem o ofício delas. O resultado´e que a Faculdade virou um lixão. Se os invasores bárbaros não dão conta nem de lavar a louça em casa, por que iriam manter a limpeza da Faculdade? O que eu não entendo mesmo é a razão pela qual eles não deixam as faxineiras trabalhar. Pelo que sei, elas vão lá no escritório da firma que as emprega, batem o ponto e ficam esperando a hora de ir pra casa. Se os invasores bárbaros deixassem as faxineiras trabalhar, eles poderiam ficar lá na boa, brincando de salvar o mundo, cantando nas rodinhas, fumando seus baseados e aprendendo a recortar e pintar. Que fofo! Que experiência formativa para os jovens universitários! Deve entrar pro curriculo como tema transversal.

Ah, tem foto de cocô de gato também. Mas eu vou poupar vocês disso. Só que eles não poupam as faxineiras. Essa história dos gatos dura anos. Teve uma época em que eu tentei fazer alguma coisa para tirar, de forma civilizada, os gatos da Faculdade. Não adiantou nada. Os gatos têm os seus defensores, os seus amantes, pessoas que se comprazem na sua companhia. Interessante é que essas pessoas não se preocupam em saber quem limpa o cocô no corredor. É claro que são as faxineiras que ganham salário mínimo. Cocô de gato no nariz dos outros é perfume. Depois essas pessoas vêm falar sobre igualdade social… Tenham a santa paciência!

Uma vez me disseram que gato é um bicho muito higiênico, que enterra o seu cocô. Só que eu quase pisava no cocô de gato toda segunda-feira, quando chegava lá cedinho e as faxineiras ainda não tinham começado a trabalhar. Com essa eu acabei desistindo de implicar com os gatos. Mas, suprema vingança, agora eu tenho a foto do cocô de gato. Mas, e se o cocô não for de gato? Quem é o autor da obra?

CONCLUSÃO

O que une os três domínios conceituais analisados é o abismo entre a teoria e a prática. A teoria é libertadora, emancipatória. A prática é perversa e abusiva em relação aos mais pobres. Os pobres são sempre prejudicados pelo menos duas vezes. A primeira por serem pobres e enfrentarem um risco maior para uma série de problemas. A segunda por não terem acesso aos serviços de que necessitam. E, muitas vezes, são ferrados também uma terceira vez porque caem nas mãos dos inteligentinhos. Que não aprenderam nada na faculdade que possa ajudar as pessoas. A não ser ficar vociferendo palavras de ordem que ouviram nos corredores ou aprenderam nos “aulões” das invasões. Temo que o percurso pelos três temas discutidos, saúde mental, educação e ecologia, tenha esclarecido pouco o modo como funciona a cabeça dos inteligentinhos. Talvez porque, na ânsia de se livrar dos preconceitos, eles esvariam tanto a cabeça que a mesma se transformou em uma ventania. Assim sendo, talvez eles não sejam inteligentinhos, mas apenas burrinhos.

Sobre o autor: Vítor Geraldi Haase é Neurologista, Professor Titular da UFMG. Doutorado em Psicologia Médica pela Universidade Ludwig-Maximilians de Munique.

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